Juliana Mara Matos
Licenciada em Letras
Mestranda em Economia, Políticas Culturais e Indústrias Criativas.
Quaresma: Ouvimos todo ano e sempre que é, por excelência, o tempo de conversão. Temos, ou deveríamos ter, entretanto, ciência que conversão é um processo, não ocorre de uma vez por todas. Converter é mudar a direção, em seu sentido mais básico.
Tomemos para refletir, durante essas 5 semanas, o processo de rompimento “com o pecado e com as seduções do demônio, [a entrada] em uma nova relação pela fé, com o Deus trino” (BERARDINO, 1983, p.735-736. Tradução nossa), ou, em suma, o rumar ao Batismo.
Aqueles que recebem o Batismo, sinal sacramental da morte de Cristo, com ele são sepultados na morte e com ele vivificados e ressuscitados. Assim se comemora e se cumpre o mistério pascal, que é para os homens uma passagem da morte do pecado para a vida. (Rito del batteismo dei bambini, n. 6. Tradução nossa)
Estabeleceremos aqui, semana a semana, uma análise textual das perícopes dos textos que compõe a Liturgia da Palavra dos cinco Domingos da Quaresma Ano A.
Antífona de Entrada
A mim, ó Deus, fazei justiça, defendei a minha causa contra a gente sem piedade; do homem perverso e traidor, libertai-me, porque sois, ó Deus, o meu socorro (Sl 42,1s).
Oração do dia
Senhor nosso Deus, dai-nos, por vossa graça, caminhar com alegria na mesma caridade que levou o vosso Filho a entregar-se à morte no seu amor pelo mundo. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.
1ª Leitura – Ezequiel 37, 12-14
Salmo – Sl 129 (130), 1-2.3-4ab.5-6-7-8(R. cf. 7)
No Senhor, toda graça e redenção!
2ª Leitura – Romanos 8,8-11
Aclamação ao Evangelho
Glória a vós, ó Cristo, verbo de Deus.
Eu sou a ressurreição, eu sou a vida. Quem crê em mim não morrerá eternamente
Evangelho – João 11, 1-45
Antífona da Comunhão
Em verdade, em verdade eu vos digo, se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas, se morrer, produzirá muitos frutos (Jo 12,24s).
Depois da Comunhão
Concedei, ó Deus todo-poderoso, que sejamos sempre contados entre os membros de Cristo, cujo Corpo e Sangue comungamos. Por Cristo, nosso Senhor.
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Chegamos ao quinto Domingo, aproximando-nos do final de nossa caminhada de reafirmação da nossa fé no Deus Trino. Nesse Domingo refletiremos sobre a vida concedida pelo Espírito aos que, reconhecendo ter culpa, despojaram-se do pecado, clamando graça e redenção da Trindade.
Na antífona de entrada, pedimos justiça, solicitando a Deus vir em nossa defesa contra a gente sem piedade. Vale lembrar que precisamos de defesa quando somos acusados de uma falta, crime, ofensa; e pedimos por um defensor quando não temos capacidade de atuar em causa própria. Uma vez aprisionados por essa falta, encontramo-nos sob o jugo do homem perverso e traidor, de quem pedimos que Deus nos liberte, ou seja, absolvidos da culpa, possamos alcançar a liberdade. Nomeando Deus como socorro, afirmamos que ele é o único a quem podemos recorrer nessa causa.
Na oração do dia pedimos que Deus nos dê, pela graça d’Ele, caminhar na mesma caridade que levou Jesus a dar sua vida pelo mundo. Como cristãos, pelo Batismo, temos parte na “graça de Deus que é dada por Cristo”[1] e, essa graça é o favor, o socorro gratuito que Deus nos dá […], é uma participação na vida divina” [2]
A primeira leitura nos traz afirmações do Senhor Deus, que podemos enumerar:
- Vou abrir as vossas sepulturas
- Vou conduzir-vos para a terra de Israel
- Vou fazer-vos sair de vossas sepulturas
- Porei em vós o meu espírito, para que vivais
- Vos colocarei em vossa terra.
Então o Senhor Deus afirma que saberemos por esses fatos que ele é o Senhor, e que, Ele, o Senhor, diz e faz. E com isso nos recordamos que “Já que por um homem veio a morte, por um homem veio também a vida[3]
O Salmo responsorial inicia-se com um anúncio: Toda graça e redenção no Senhor. Iniciar essa reposta afirmando “No Senhor” é um recurso para destacar que n’Ele está toda graça. Graça essa que, conforme vimos, nos é dada pelo Batismo, e é o que nos permite participar na vida divina, a qual recebemos pelo Espírito, junto com a caridade e, assim, formamos Igreja;[4] e redenção, que nos foi concedida pela remissão dos pecados pela cruz de nosso Senhor Jesus Cristo.
Versículos 1 e 2 há um clamor individual para que o Senhor volte os ouvidos para escutar a voz e a prece. No versículo 3, que pode ser atribuído a outro ator, levando em conta o pronome possessivo “nossas”, há um questionamento ao Senhor invocado anteriormente: “Quem haverá de subsistir, se levardes em conta nossas faltas?” A sentença, em seu conjunto, a conjunção indicando a ideia de possibilidade, e a pergunta, no início, nos propõe a resposta: ninguém será capaz de subsistir, se levardes em conta nossas faltas, mas no versículo 4, a mesma voz do início retorna afirmando que a possibilidade do versículo 3 não é plausível, uma vez que “No Senhor se encontra o perdão”, e por isso a afirmação de temer e esperar. Isso é necessário!
Assim como é necessário colocar a esperança no Senhor, tema central dos versículos 5 a 7a, sob a justificativa já apresentada na resposta do salmo: A graça e a copiosa redenção. Lembrando que “copioso” é sinônimo de grandioso, abundante. Por essa graça e redenção a recompensa: libertação da culpa.
Em relação a segunda leitura, podemos nos apoiar em Santo Agostinho que explica que “O Espírito Santo se fez presente no batizado para que seus pecados desaparecessem”[5]
Na aclamação ao Evangelho, Cristo nos exorta a crer n’Ele, ressurreição e vida, para não morrer eternamente. Há muitos detalhes no Evangelho desse quinto Domingo. Identifica-se o doente e suas irmãs: Lázaro, Maria e Marta. Explica-se que Jesus era muito amigo dos três, que viviam em um povoado chamado Betânia, a cerca de 3 km de Jerusalém. As irmãs mandam dizer a Jesus que Lázaro está doente. E Jesus ainda fica na cidade onde estava por 2 dias. Nesse tempo, a doença de Lázaro o leva à morte.
Jesus, após informar a morte de Lázaro aos discípulos diz: “[…] por causa de vós alegro-me por não ter estado lá, para que creiais”. Jesus expressa seu desejo em que os apóstolos creiam e, para que isso aconteça, ter sido importante não terem estado em Betânia antes da morte de Lázaro. Jesus segue: “[…] vamos para junto dele”, ao que Tomé responde “Vamos nós também para morrermos com ele”. Textualmente há duas possibilidades de interpretação, que se encontram e convergem, nesse encorajamento feito por Tomé: Jesus havia a pouco deixado a Judeia pois os judeus o queriam apedrejar, o que resultaria em morte, então, Tomé estava retomando a questão levantada pouco antes, no versículo 8. A outra possibilidade é: Jesus diz: “vamos para junto dele”. Não está explícito no texto há quantos dias Lázaro estava morto, quando Jesus decide ir até ele, mas, no versículo 17 descobrimos que quando Jesus chega, já estava sepultado há quatro dias. Nesse caso, Tomé entende que “ir para junto dele” significa morrer também, assim como Lázaro. As duas possibilidades fazem sentido. De qualquer maneira, o risco de morte era existente e, ainda que existisse o medo da morte, é expresso o desejo de estar com Jesus, segui-lo.
Quando Jesus chora, percebemos a divisão entre os judeus, mais uma vez. Alguns afirmavam: “Vede como ele o amava!” (Jo, 11,36), ao notarem que Ele chorou vendo Maria e os que estavam com ela também chorando. Outros: “Este, que abriu os olhos ao cego, não podia também ter feito com que Lázaro não morresse?”. Não há uma resposta verbal de Jesus, ele segue, ainda comovido. Sua resposta é o que ocorre em seguida. Frente ao ocorrido, frente “à glória de Deus” manifestada na ressurreição de Lázaro, muitos judeus creram nele. Não há dúvidas que ressurreição é ressurgir da morte para a vida. Santo Ambrósio de Milão afirma que sair da água e ressurgir pelo Batismo, representa a ressurreição.[6] Livres do pecado pelo Batismo, entretanto, não nos esvaziamos da fragilidade humana e voltamos a situação do pecado, que exige a busca pelo sacramento da penitência e reconciliação, permitindo, assim, uma reaproximação:
Vendo, então, o fardo pesado do pecador, o Senhor Jesus chora (cf. Jo 11,35); com efeito, ele não permite que a Igreja chore sozinha; ele participa dos sofrimentos de sua amada e diz ao morto: “Vem para fora” (Jo 11,43), isto é: “Tu que jazes nas trevas de tua consciência e na imundície de teus delitos, como que no cárcere dos réus, sai para fora, revela teu próprio delito, para que sejas justificado”. Pois “é pela boca que se faz a confissão para salvar-se” (Rm 10,10).[7]
Na antífona de comunhão há a analogia com o grão de trigo. Apenas se morrer, produzirá muito fruto. Pouco antes no texto, em João 12, 23, Jesus afirma: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado”. Assim, Jesus, ao morrer, proporciona alcançarmos o fruto da vida eterna.[8]
Depois da comunhão oramos para que sejamos sempre contados entre os membros de Cristo, cujo Corpo e Sangue comungamos, e por quem somos “animados exatamente como um corpo normal é animado pela alma”.[9] Conscientes, então, de nossa condição de pecadores, mas certos de que alcançaremos à vida eterna em Cristo, rumemos à Páscoa.
Referências Bibliográficas
BERARDINO, Angelo Di. Nuovo Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane A-E. Genova: Marietti, 2006.
BÍBLIA – Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2003.
SANTO IRINEU. Demonstração da pregação apostólica. São Paulo: Paulus, 2014.
KELLY, J. N. D. Patrística: Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã. Tradução Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1994.
PAPA FRANCISCO. Angelus. Biblioteca do Palácio Apostólico Domingo, 22 de março de 2020. Disponível em <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/angelus/2020/documents/papa-francesco_angelus_20200322.html>. Acesso em: 12 mar. 2023.
RITO del batteismo di bambini. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 1985. Disponível em: <https://liturgico.chiesacattolica.it/wp-content/uploads/sites/8/2017/05/31/Rito-del-battesimo-dei-bambini-light.pdf.> Acesso em 20 fev. 2023
SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Lecionário Dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994.
SANTO AGOSTINHO. Tratado Sobre o Batismo. São Paulo: Paulus, 2019.
SANTO AMBRÓSIO DE MILÃO. Ambrósio de Milão: Explicação dos Símbolos, Sobre os Sacramentos, Sobre os mistérios, Sobre a Penitência. São Paulo: Paulus, 2014.
SÃO CIRILO DE JERUSALÉM. Catequeses pré-batismais. Petrópolis: Editora Vozes, 2022. Edição do Kindle.
[1] SÃO CIRILO DE JERUSALÉM, 2022, p.49)
[2] CIC, 1996-1997
[3] Rm 5,12.17; 1Cor 15,21 apud SÃO CIRILO DE JERUSALEM, p.2
[4] CIC, 1997
[5] 2019, p.40
[6] 2014, p. 29
[7] SANTO AMBRÓSIO DE MILÃO, 2014, p. 90
[8] Romanos, 6,22
[9] KELLY, 1994, P.169
1 Comment
Silvio
Morrer sempre para o pecado para podermos ressuscitar com Cristo, em Cristo! Parabéns Juliana por essa reflexão!