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Na testa ou na cabeça?

 

D. Jerônimo Pereira Silva, osb[1]

 

 

 

Ontem à noite recebi a ligação de um amigo com o qual partilhei que, depois de 18 anos de ordenado presbítero, por causa da minha condição de monge, presidiria o rito das cinzas, nessa quarta-feira, pela segunda vez. Imediatamente ele me lançou a pergunta: “Dom, o sinal das cinzas é colocado na fronte ou na cabeça?” De fato, uma pesquisa rápida no Google, nos mostra ambas as formas. Mas, para se evitar qualquer distorção “ideológica” ou “romântica”, pergunta-se, não ao liturgista, mas ao rito, que tem autoridade máxima em matéria, como ensina a Igreja (cf. SC 48)

 

UM POUCO, MAS MUITO POUCO, DE HISTÓRIA

O uso das cinzas para indicar penitência não é puramente cristão. Era muito usado na Antiguidade por pagãos e judeus. Na cultura bíblica ele aparece com uma multiplicidade de significados.[2] As primeiras comunidades cristãs acolheram esse gesto como símbolo da transitoriedade da vida humana e tomaram-no indicador de um propósito de conversão no itinerário da fé. Testemunham-no os mais antigos escritores cristãos, como, por exemplo, Tertuliano (c. † 220), Cipriano de Cartago († 285), Eusébio de Cesaréia († 339), Ambrósio de Milão († 397), Jerônimo († 420), Agostinho († 430) etc.

Originalmente usado somente para com os membros da Igreja que, tendo cometido pecados graves (fratricídio, adultério ou apostasia), arrependidos e confessados, pediam para voltar à comunhão eclesial. Esse sistema (ordo pœnitentium) foi chamado de penitência canônica ou pública. Muito cedo a Igreja fez coincidir o início dessa forma de penitência com o começo da Quaresma, fixando a sua data para a quarta-feira antes do I domingo do Tempo Quaresmal, em vista da absolvição (pública) dos pecadores na quinta-feira santa pela manhã para que eles pudessem comer a Páscoa. Assim nasceu a nossa quarta-feira de cinzas. Em 1091, sob o pontificado do papa Urbano II († 1099), o rito foi estendido a todos os cristãos, clérigos e leigos. As cinzas eram espalhadas sobre a cabeça dos homens e às mulheres era feito uma cruz sobre a fronte, por causa de sua cabeça velada. Nos livros litúrgicos, a denominação Quarta-feira de Cinzas, só apareceu no séc. XV, com o Missal impresso de 1474.

 

DEMOS A VOZ AO RITO

O rito da bênção das cinzas, que acontece depois da homilia, tanto quando se celebra a missa, quanto se celebra a liturgia da Palavra, começa com uma introdução e “é encerrado com a oração dos fieis” (cf. MR p. 175-177).

A Introdução:

MR ed. Typ. latina (1970/1975/2002/2008)

Deum Patrem, fratres caríssimi, supplíciter deprecémur, ut hos cíneres, quos pæniténtiæ causa capítibus nostris impónimus, ubertáte grátiæ suæ benedícere dignétur.

MRport. (1973/1991)

Caros irmãos e irmãs, roguemos instantemente a Deus Pai que abençoe com a riqueza da sua graça estas cinzas que vamos colocar sobre as nossas cabeças em sinal de penitência.

A segunda oração de bênção das cinzas, que se faz “após um instante de silêncio”: MR ed. typ. latina (1970/1975/2008/2008)

Deus, qui non mortem sed conversiónem desíderas peccatórum, preces nostras cleménter exáudi, et hos cíneres, quos capítibus nostris impóni decérnimus benedícere ✠ pro tua pietáte dignáre, etc.

MRport. (1973/1991)

Ó Deus, que não quereis a morte do pecador, mas a sua conversão, escutai com bondade as nossas preces e dignai-vos abençoar ✠ estas cinzas, que vamos colocar sobre as nossas cabeças. Etc.

 

CONCLUSÃO

A imposição das cinzas se faz pulverizando a cabeça dos fieis que se aproximam processionalmente e se apresentam ao presidente, “caput inclinatus”, e não assinalando as frontes com uma cruz. Esse último gesto é episcopal, usado na celebração do sacramento da Confirmação com o óleo santo do Crisma. Obviamente, essa é uma resposta “histórico-ritual”, precisa-se aprofundar as razões bíblicas, antropológicas e teológicas, pelas quais a Igreja manteve, ritualmente, essa forma, para se evitar a doença degenerativa do rubricismo.

 

02.03.2022 – Feria IV cinerum, caput Quadragesimæ, caput ieiunii

 

APROFUNDAR?

A celebração na Igreja, vol. 3: Ritmos e tempos da celebração, ed. D. Borobio, Loyola, São Paulo 2000, p. 148-149.

AUGÉ, Ano litúrgico. É o próprio Cristo presente na sua igreja, Paulinas, São Paulo 2019, pp. 155-159.

ADAM, O ano litúrgico. Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica, Loyola, São Paulo 2019, pp. 72-73

 

[1]D. Jerônimo Pereira é monge beneditino do Mosteiro de São Bento de Olinda, desde 1996. Mestre em Teologia com especialização em Liturgia Pastoral, pelo Instituto de Liturgia Pastoral de Santa Justina (Pádua, Itália – 2012) e doutor em Sagrada Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico de Roma, Santo Anselmo (Itália – 2016). É membro da Equipe de Reflexão teológico-pastoral da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia da CNBB e do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard. Atualmente é professor convidado no Instituto de Liturgia Pastoral de Santa Justina (Pádua, Itália) e no Pontifício Instituto Litúrgico de Roma (Santo Anselmo); em ambos se ocupa precisamente da celebração litúrgica da Palavra de Deus. É docente de liturgia e de sacramentos no curso de Graduação em Teologia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e nos Cursos de Pós-graduação Lato Sensu em Liturgia, Espaço Litúrgico e Música Litúrgica do Centro Universitário Salesiano (UNISAL)/Campus Pio XI, São Paulo.

[2]Indica tudo o que é passageiro (Jó 13,12), sem valor (Gn 18,27; Is 44,20), sinal de luto e arrependimento (2Sm 13,19; Is 61,3; Mt 11,21) e de purificação (Nm 19; Hb9,13).

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