Esp. Anderson Cata Prêta[1]
andersoncatapreta@yahoo.com.br
“Ouve ó Israel” (Dt 4,6)
Bastaria descortinar sobre a tipologia do corpo,[2] em que o falar não é um sentido, mas o ouvir sim. Porém, isso já se desenvolve dentro do processo formativo que é oferecido.[3] O que também seria, em poucos parágrafos, algo muito raso. A urgência é mostrar um dos grandes problemas que vivemos nas liturgias, a questão da dependência do uso do microfone, que gera a exclusão da assembleia dentro do rito.
Caminhemos com a reflexão, (com a intenção de, ou a fim de verificar) se o ato de se exorcizar do vício do uso do microfone, ocorre.
Iniciamos com a mais recente contribuição de Francisco que nos adverte: “[…] a Liturgia não diz “eu”, mas “nós” e qualquer limitação na extensão desse “nós” é sempre demoníaca.” (FRANCISCO, 2022, §19). Sim, quando usamos o microfone, no que se refere ao que pertence a assembleia, todos membros de um só corpo (1 Cor 12,27), eu digo eu, em vez de nós. Quem pratica esse tipo de conduta, sobressaindo a fala dos outros está dividindo, roubando, matando e destruindo (Jo 10, 10a).
Não bastando a advertência de Francisco, pois vivemos em uma realidade católica no mundo todo, que se não se respeita o que o Papa orienta, adentramos ainda mais sobre o problema, reforçando a comunhão com o sumo pontífice, e acreditando que escutar o Papa é saudável para nossa fé:
Antes de tudo, as ovelhas escutam a voz do pastor. A iniciativa vem sempre do Senhor; tudo parte da sua graça: é Ele quem nos chama à comunhão com Ele. Mas esta comunhão se realiza se nos abrirmos à escuta. Escutar significa disponibilidade, docilidade, tempo dedicado ao diálogo” (VATICAN NEWS, 2022b)
Como bem sabemos, a perfeita obra da redenção dos homens e da glorificação de Deus, se realizou pela vontade do Pai em Cristo.[4] Portanto, uma iniciativa sempre divina. A comunhão tão exigida na liturgia, nasce e necessita da escuta, que não existe devida a exclusão do silêncio como rito em detrimento a uma audiência de meios de comunicação e um individualismo provocado pela necessidade de aparecer, e querer ser como deuses (Gn 3,5). A falta de escuta também é falta de respeito. Mostra a falta de disponibilidade e atenção aos presentes, principalmente quando se rouba a resposta do Kyrie,[5] o Santo[6] e a resposta da Fração do Pão.[7] As leis litúrgicas, são claras e exigem essa expressão única da assembleia em vista de algo maior do que mero rubricismo. Concepção que só será absorvida quando todos se envolverem em processo formativo. Caso contrário, viverão egoístas sem falar a mesma língua, como em Babel.[8]
A liturgia é um diálogo em Jesus ao Pai,[9] e para existir diálogo é necessário mais do que uma fala, portanto, mais do que um serviço, mais do que um microfone. Qualquer atitude diferente dessa, seria uma aberração a vocação cristã que é de acolhimento e agregação.
Poderia aqui finalizar, mas receio que ainda não seja o suficiente para entender que a atitude em torno de um microfone é um bezerro de ouro.[10] Pois bem, escutemos: “O Senhor é a Palavra do Pai e o cristão é filho da escuta, chamado a viver com a Palavra de Deus ao alcance da mão” (FRANCISCO, 2022b). Somente vamos aprender, quando ouvirmos a palavra de Deus. Quando entendermos que o amor ao próximo precisa acontecer. Mas seria necessário a advertência de Deus, como fez a Jó, quando mando ouvir e calar a boca?[11]
Fica evidenciado a crise que vivenciamos dentro da religião católica, de que a relação com Deus está cada vez mais distante, como foi apontado pelo Cardeal Sarah: “Quando o homem permanece em silêncio, ele deixa espaço para Deus. Já quando a liturgia se torna falante, ela se esquece de que a cruz é o seu centro e se organiza em torno do microfone. Todas essas questões são cruciais, porque determinam o lugar que damos a Deus. Infelizmente, elas se transformaram em questões ideológicas”. (ALETEIA, 2021). Um antropocentrismo vazio, atrelado e motivado por um ativismo estéril (VATICAN NEWS, 2022a). E não se percebe que
Onde todos agem para serem eles mesmos sujeitos, desaparecem o sujeito comum Igreja, aquele que verdadeiramente age na liturgia. Pois se esquece que ela deveria ser obra de Deus, onde Deus mesmo age primeiro; e, pelo fato de que Ele age, nós somos redimidos. O grupo celebra a si mesmo e, consequentemente, não celebra nada. Ele [o grupo], de fato, não é um motivo para celebrar. Por isso, a atividade comum se traduz em tédio. Na realidade, nada acontece se permanece ausente do Senhor do qual todo mundo está a espera.” (RATZINGER, Joseph. Teologia da Liturgia. p. 532. CNBB, 2019. )
Esse tipo de conduta, gerará na realidade social um distanciamento, pois a celebração estaria estimulando o afastamento e a opressão em torno daqueles que possuem o poder de um instrumento. Não dá para separar a vida litúrgica da vida do cotidiano.
Concluo com as palavras diretas do Papa:
“Hoje estamos sobrecarregados de palavras – disse ainda o Papa – e com a pressa de sempre ter que dizer e fazer alguma coisa, na verdade quantas vezes duas pessoas estão falando e uma não espera que a outra termine seu pensamento, ela corta a conversa pela metade, responde sem esperar. Mas se você não o deixa falar, não há escuta. Este é um mal do nosso tempo. Hoje estamos sobrecarregados pelas palavras, pela pressa de sempre ter que dizer algo, temos medo do silêncio”. (VATICAN NEWS, 2022b)
Enchemos a liturgia de palavras e microfones. Enchemos todo tempo de uma necessidade intimista de expressão e não abrimos a voz de Deus. Enquanto não nos abrirmos a essa verdade, realmente não entenderemos o que se celebra. Como procedemos, então? Escolhendo sempre a melhor parte, como fez Maria:[12] preferiu ouvir.
Referências
ALETEIA (2021). Crise da Liturgia é crise da relação com Deus: afirma o Cardeal Sarah. Disponível em <https://pt.aleteia.org/2021/03/12/crise-da-liturgia-e-crise-da-relacao-com-deus-afirma-o-cardeal-sarah/> Acesso em 19 jul 2022.
BÍBLIA. (2001) Português. In: Bíblia Sagrada: antigo e novo testamento. Tradução: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São Paulo, Brasil. Paulus.
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II (1963). Sacrossactum Concílium: constituição conciliar sobre a sagrada liturgia. Disponível em: <https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html>. Acesso em 19 jul 2022.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (2021. Instrução Geral do Missal Romano e Instrução ao Lecionário. 7. ed. Brasília: Edições CNBB.
FRANCISCO, Papa. (2022a) Desiderio Desideravi: ai vescovi, ai presbiteri e ai diaconi, alle persone consacrate e ai fedeli laici sulla formazione liturgica del popolo di dio. Disponível em <https://www.vatican.va/content/francesco/it/apost_letters/documents/20220629-lettera-ap-desiderio-desideravi.html> Acesso em 19 jul 2022.
RATZINGER, Joseph (2019). A teologia da Liturgia: O fundamento sacramental da existência cristã. 2. Ed. Brasília: Edições CNBB.
VATICAN NEWS (2022a). O papa: a palavra de Jesus não é abstrata, é um ensinamento que transforma a vida. Disponível em <https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-07/papa-francisco-angelus-evangelho-palavra-jesus-ensinamento-vida.html> Acesso em 19 jul 2022.
__ (2022b). O Papa: o cristão é filho da escuta. Disponível em <https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-05/papa-francisco-regina-caeli-8-de-maio.html> Acesso em 19 jul 2022.
[1]Maestro, especialista em práticas musicais para espaços religiosos brasileiro e psicopedagogo.
[2]Segundo a concepção do processo formativo do Caminho, a liturgia é desenvolvida e traduzida por nós homens, através da experiência da relação de quatro formas, que em sua essência favorecem o objetivo do culto.
[3]O texto em questão é vinculado a formação continuada do Caminho. Mais informações: caminhomusicaliturigca.com
[4]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1963, §5
[5]CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2021, §52
[6]Ibidem, 79b
[7]Ibidem, §83.
[8]Gênesis 11, 1-9.
[9]João 17.
[10]Êxodo 32.
[11]Jó 33,31.
[12]Lucas 10,38-42.
2 Comments
Maria da Conceição Baltazar
Seria bom se todos os cantores ou até mesmo a esquipe de liturgia tivessem um pouco de noção dos ritos.
Jônisson da Silva Rolim
Reflexão muito importante e necessária. Como seria bom se as equipes de liturgia e mesmo os párocos compreendessem que a liturgia em si é quem deveria FALAR, através de seus ritos, e isso inclui a assembleia litúrgica.