Skip to content Skip to footer

A EXISTÊNCIA DO DIÁLOGO COM MÚSICA NO RITO CATÓLICO ROMANO CELEBRADO NO BRASIL

 

Anderson Cata Preta
andersoncatapreta@yahoo.com.br

 

 

RESUMO

O presente artigo levará o leitor a compreender a existência do diálogo feito com música para o desenvolvimento da prática do culto católico romano celebrado no Brasil. Compreendendo que, com a arte musical, os textos propostos e orações indicam uma dinâmica propícia para os objetivos da instituição em congregar seus seguidores na prática cultual. Utilizando-se de registros bibliográficos e pesquisa na história da instituição, paralelamente a reflexão da arte como ciência que age sobre os indivíduos e sua perspectiva filosófica. Indica novas possibilidades e provocações para futuras pesquisas a partir da contextualização e afirmação da existência desta prática entre os congregados.

Palavras-chave: Música litúrgica; Liturgia católica; Diálogo ritual.

 

  1. INTRODUÇÃO

A prática musical no espaço religioso católico é um exercício muito presente.[1] A fim de melhor compreendermos a ação ritual do culto em questão e a prática musical neste espaço, é importante contextualizar alguns pontos relevantes, tais como: a forma celebrativa, as normas estabelecidas pela instituição, suas referências nos textos bíblicos, etc. Todavia, não pretende esgotá-los, decifrando os diversos conceitos e perspectivas do culto católico, ou propor uma reflexão teológica, uma vez que não é a finalidade deste artigo. De forma direta, é preciso compreender que, o culto católico celebrado possui características e fundamentações na história do cristianismo. Está fundamentado nos escritos e relatos históricos durante os séculos: baseado na Bíblia, em suas constituições dogmáticas assumidas por um magistério da própria instituição e ensinamentos de diversas autoridades da própria Igreja Católica. Vale destacar também, como uma ação de relação entre os presentes que promove também um evento social.

A proposta apresentada se destina a elucidar a prática dialogal entre os congregados católicos no culto que celebram, identificando assim, a forma com que a música nesse espaço sagrado é realizada. Nortear futuras pesquisas mais aprofundadas sobre o tema e contribuir para a reflexão do desenvolvimento da arte no espaço sagrado que é tratado. A música evidencia um texto que foi escrito para um diálogo entre os presentes e para um destinatário supremo. Este diálogo é direcionado para glorificação a Deus.[2] A música colabora com este diálogo, e favorece a consciência do culto. Tal objetivo que se discute e nos tempos atuais ainda não são consolidados.

 

  1. A REUNIÃO

O culto celebrado pelos católicos no Brasil tem fundamentações e embasamento nas orientações da própria instituição que o construiu, em referência aos textos bíblicos.[3] Mesmo que exista um conflito teológico quanto a ceia de Jesus junto aos discípulos, no que se refere uma ceia pascal judaica ou uma nova ceia, é importante mencionar, para melhor evidenciarmos a participação musical no culto, que o próprio Jesus cantou[4] os salmos.[5] E essa informação possibilita desenvolver neste texto a existência desta ação ritual, que para os católicos converge em Cristo.[6]

É preciso considerar que o culto, não apenas para a teologia, mas também com olhar científico, serve para compreender e colaborar no entendimento da amplitude do sentido desta reunião de fiéis. Um encontro que não se resume na prática de ritos ou de uma ação do povo[7] e sim repleto de sentidos, significados e relações:

[…] em primeiro lugar, vê-se que o culto, entendido na sua verdadeira amplitude e profundidade, vai bem além da ação litúrgica. Ele definitivamente, abraça o ordenamento de toda a vida humana, no sentido das palavras de Irineu: o homem se torna glorificação de Deus, o coloca por assim dizer, em evidência (e isto é culto), quando vive do olhar para Ele. (RATZINGER[8], 2019, p. 37).

Adentramos na compreensão do culto investigado e buscamos perceber esta relação e os eventos ocorrentes.

2.1 O CULTO: A REUNIÃO DE CONGREGADOS

Iniciamos nossa reflexão com base no estudo bibliográfico que nos possibilita conceituar de forma objetiva para que estrutura de culto a prática musical está inserida. Encontramos nos textos bíblicos um dos mais antigos registros do culto do cristianismo. O culto era uma atividade presente nas primeiras comunidades.[9] Destaca-se a presença de um grupo reunido.[10] Este culto exigia, como exige também hoje, a presença da comunidade dos que professam a mesma fé, conforme afirma Gelineau:[11] “Já que a liturgia é ‘serviço público’, não existe culto plenamente litúrgico a não ser que seja celebrado para e por um povo reunido” (GELINEAU, 1972, p.40). Esta prática religiosa é uma ação popular que visa a comunidade e tem a origem no termo grego leitourgia.

Na doutrina católica “uma celebração sacramental é um encontro dos filhos de Deus com o Pai, em Cristo e no Espírito Santo, e este encontro se exprime como um diálogo, mediante ações e palavras.” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2000, § 1153). Trata-se da celebração principal dos católicos, “[…] centro e fonte da vida de toda comunidade cristã” (CARVALHO, 2008, p. 9). Portanto, esta reunião exige que seus adeptos estejam presentes e com um motivo comum, logo que seja consciente, a fim de alcançar uma finalidade própria.[12] A motivação comum dos adeptos a religião está na condição de batizado.[13] O batismo é um valor para os cristãos católicos que realizam o culto. Uma vez recebido o sinal de admissão à religião, os cristãos católicos passam a assumir os deveres e direitos que compete:

[…] pelo Batismo são os homens enxertados no mistério pascal de Cristo: mortos com Ele, sepultados com Ele, com Ele ressuscitados; recebem o espírito de adoção filial que ‘nos faz clamar: Abba, Pai’ (Rm. 8.15), transformando-se assim nos verdadeiros adoradores que o Pai procura. E sempre que comem a Ceia do Senhor, anunciam igualmente a sua morte até Ele vir. Por isso foram batizados no próprio dia de Pentecostes, em que a Igreja se manifestou ao mundo, os que receberam a palavra de Pedro. E ‘mantinham-se fiéis à doutrina dos Apóstolos, à participação na fração do pão e nas orações, louvando a Deus e sendo bem vistos pelo povo’ (At. 2. 41-47). Desde então, nunca mais a Igreja deixou de se reunir em assembleia para celebrar o mistério pascal: lendo ‘o que se referia a Ele em todas as Escrituras’ (Lc. 24.27), celebrando a Eucaristia, na qual se torna presente o triunfo e a vitória da sua morte, e dando graças ‘a Deus pelo Seu dom inefável (2 Cor. 9.15) em Cristo Jesus, ‘para louvor da sua glória’ (Ef. 1.12), pela virtude do Espírito Santo. (CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1963, §6).

O culto católico também está ligado a metáfora do texto paulino no Novo Testamento em que Cristo é a cabeça e os congregados formam o corpo.[14] Este corpo, para a Igreja, está ligado a cabeça e possui uma vocação conferida no batismo.[15] Também podemos destacar o culto como uma festa.[16] Neste evento temos pessoas reunidas, que exprimem sentimentos e ações. Esta relação se dá de várias maneiras: uma das mais marcantes é o diálogo.[17]

2.2 A LITURGIA CATÓLICA COMO DIÁLOGO

A relação dos participantes é bem vista no desenvolvimento do rito católico, quando esses guiados pelo ministro ordenado que preside, são convidados a não serem espectadores mudos.[18] Isso implica um movimento e ações pois, para a reflexão teológica, a liturgia não é limitada a proclamação de orações em que outros apenas escutam.[19] E temos isso mais claramente nos apontamentos de Gelineau defendendo que “toda assembleia cristã se põe à escuta da Palavra de Deus; e a ela responde pelo canto e pela oração. É a liturgia da Palavra em que se estabelece como que um diálogo entre Deus e seu povo. Não há assembleia sem diálogo.” (GELINEAU, 1973, p.22). Com este conceito da atitude celebrativa estruturada no diálogo se entende que “[…] a palavra é mais ainda comunicação do que expressão. Não se fala para si mesmo; falar sozinho é considerado anomalia; o fato de falar pressupõe alguém que escute” (GELINEAU, 1973, p.151).

Para melhor elucidar esse evento dialogado, padre Gregório Lutz, aponta a estrutura dialogal entendendo esta reunião festiva de louvor: “como uma refeição festiva qualquer, também à missa não se vai só para comer e beber, e sim também para conversar. Parceiros da conversa são todos os participantes da festa, mas de modo particular o seu dono.” (LUTZ, 2019, p. 17).

A saber:

Deus se dirige a nós Nós nos dirigimos a Deus
Ritos Iniciais[20]
Em nome de Deus, quem preside nos dá as boas-vindas na saudação e na acolhida.[21] Respondemos no ato penitencial no hino de louvor, na oração do dia.
Liturgia da Palavra[22]
Deus fala na primeira leitura pelos profetas Respondemos pelo salmo responsorial
Deus fala na segunda leitura pelos apóstolos Nós retomamos a palavra na aclamação ao Evangelho.
Deus fala no evangelho pelo próprio Filho
Deus continua falando pela homilia Respondemos pelo creio e na oração dos fiéis
Liturgia Eucarística[23]
Na preparação das oferendas, apresentamos os dons.
Na oração Eucarística, anunciamos a salvação e vem o Espírito Santo Na oração Eucarística, agradecemos a Deus e oferecemos o sacrifício eucarístico
Ritos Finais[24]
Na benção e despedida, Deus nos envia.

 

Fonte: LUTZ, 2019, p.19.

Portanto, “na liturgia entramos e estamos em contato, em comunhão com Deus. Liturgia no fundo é oração, e oração é diálogo com Deus” (LUTZ, 2003, p. 38). E “[…] essa estrutura de palavra e resposta, que para a liturgia é essencial, constitui a estrutura fundamental do evento revelador como tal” (RATZINGER, 2015, p. 171).

2.3 OS PARTICIPANTES DO DIÁLOGO

Tendo compreendido que o culto é esta reunião de pessoas que possuem em comum a adesão religiosa e se colocam a uma prática dialogal (e será aprofundada mais a frente) que possui relação entre os envolvidos, passaremos a observar os personagens identificados no diálogo: Deus e o povo.

A organização ritual[25] encaminha o indivíduo à oração através da escuta dos textos contidos na Bíblia, e assim a palavra do homem é colocada também e em segundo ato como uma resposta[26], logo, “[…] antes de tudo, é a ação de Deus que sempre nos precede. É Ele que nos torna partícipes; a participação é ação ativa e eficaz de Deus!” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2017b, p. 25). Uma vez que para a teologia católica “[…] o ser humano não pode criar sozinho o seu próprio culto; ele só agarra o vazio, se Deus não se mostra” (RATZINGER, 2015, p. 18), mas, compreendendo que este diálogo nasce em Deus e pertence a Deus desde o princípio.[27] Então, “[…] Deus toma a iniciativa, propondo e dialogando, e a assembleia responde de modo adequado” (WEBER, 2016, p. 96), caracterizando a dinâmica da palavra que seria como a chuva e a neve caem do céu.[28] Esta conversa segundo a concepção católica acontece de várias maneiras, todavia, essa comunicação divina se dá “[…] sobretudo, quando sua palavra é proclamada na assembleia dos que nele creem, particularmente na missa” (LUTZ, 2019, p.16). E esta assembleia de crentes[29], concorda que Deus se comunica com esta palavra que “[…] não é um texto histórico de antepassados e muito menos um código de normas éticas. Quando é proclamada, o próprio Senhor se faz presente e nos faz ouvir a sua voz” (BOGAZ, 2014, p. 70).

Assim, temos o espaço para a resposta deste diálogo o qual compete ao povo reunido que teve o reconhecimento no Concílio Vaticano II como agente principal da liturgia[30] e neste mesmo Concílio foi apontado que “[…] é desde o começo da sua existência que o homem é convidado a dialogar com Deus” (CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1965, §19). Dentro do culto católico é a assembleia reunida que responde o diálogo, assim “[…] a liturgia se apoia não no indivíduo, mas na comunidade dos fiéis” (GUARDINI, 1942, p. 43), como uma dinâmica que a assembleia formada por indivíduos e cada um destes presentes que estão “[…] diante de Deus não como um ser isolado, mas como membro desta unidade. É ela que fala a Deus; o fiel fala nela” (GUARDINI, 1942, p. 44).

 

  1. A EXPRESSÃO DOS CONGREGADOS

Reunidos no culto, a expressão dos congregados solicita consciência das palavras, para que “[…] os fiéis se aproximem com as melhores disposições interiores, que seu coração acompanhe a sua voz” (CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1963, §11). E esta consciência é direcionada pela dinâmica de oração proposta pela liturgia, “[…] a fim de que se estabeleça um colóquio entre Deus e o homem; pois a ‘Ele falamos quando rezamos; a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos’” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2000, §2653).

3.1 DIFICULDADES DO DIÁLOGO NA CELEBRAÇÃO AO LONGO DA HISTÓRIA E NOS DIAS DE HOJE

Nem sempre o diálogo dentro da celebração foi utilizado ao longo da história milenar da Igreja Católica. Encontramos diversos momentos e formas de celebrar que, para assegurar a tradição dos textos e da expressão do culto, acabaram por reduzir as funções ou os envolvidos quanto a proferir os textos. Refletiremos a partir do estudo de Burkhard Neunheuser[31] sobre a história da liturgia, entre outros autores que trazem apontamentos históricos de como aconteciam as relações cúlticas, como se organizavam e como era a ação dos congregados.

A primeira grande mudança acontece quando o Império Romano, no final do Século IV[32], assume o cristianismo como religião oficial, e torna-se necessário iniciar, educar e orientar os novos adeptos à religião. O processo para a iniciação cristã se chama catecumenato e é feito em vista do batismo daquele que passará a congregar na religião dos cristãos. Esse movimento repentino de muitos adeptos em pouco espaço de tempo também gera situações que não eram vivenciadas pela religião. Logo, o catecumenato começa a desaparecer e a transmissão dos conceitos e do entendimento da religião ficam comprometidos. Então, temos o início do distanciamento no Ocidente, entre a assembleia que se entendia como sujeito dos ritos e os ministros que eram encarregados das ações rituais que os pertenciam.[33]

No século VIII, já encontramos um distanciamento ainda maior dentro das celebrações, que acontece visivelmente no diálogo entre quem preside e todo o povo, com poucas orações em alta voz, gestos limitados e a multiplicação de orações privadas, “[…] sendo a missa considerada um valor quase autônomo e oferta só do sacerdote, sem que seja claramente a importância da participação e da presença do povo” (NEUNHEUSER, 2007, p. 133). Este movimento fica atenuado por específicos fatores no decorrer dos séculos, mais precisamente entre os séculos VIII e X, quando “a distância entre povo e ação litúrgica é então um fato realizado. Diminui a participação por causa da língua, da ausência da comunhão sacramental, de uma estima sempre crescente pela importância (só) do clero (NEUNHEUSER, 2007, p. 133).

O movimento de distanciamento na celebração gerado pela ausência de uma linguagem verbal que estimulasse o diálogo, foi cada vez maior e isso acarretou a diminuição da participação, ao ponto de gerar incapacidade aos fiéis de ler ou cantar os textos da celebração. Passa a creditar tudo ao ministro que conduz o culto, valorizando ainda mais a sua função. Tal conduta cria a conotação de único atuante que coloca os fiéis como expectadores.[34] Ainda na idade média outros fatores vão colaborando para a menor possibilidade do diálogo dentro do rito de forma mais acentuada do que foi apontada no século IV. Será no século XIII o maior distanciamento existente. A assembleia se contenta em apenas ver.[35]

Após a Idade Média, a prática devocional começou a ganhar espaço e se destacou após o Concílio de Trento.[36] Aponto a prática de adoração feita ao santíssimo sacramento. Essas práticas eram “[…] como que paradigmáticas e chegaram a ser mais importantes que a comunicação e o encontro” (MARINS, 2015, p. 27), criando um novo cenário em que a o distanciamento da comunicação dentro da celebração passa a ser normal e acaba gerando uma forma individual de expressão e relacionamento com o sagrado. Este cenário perdurará pelos séculos até a provocação do movimento litúrgico que estimulará na Igreja a necessidade de rever a dinâmica celebrativa. Então chegamos à realidade do século XXI e, embora cientes de que o diálogo no discurso celebrativo está prescrito, solicitado, estudado e orientado na liturgia católica, nos tempos de hoje não é a certeza de que concretamente seja uma atividade presente. Ao dar espaço a integração dos fiéis, atrelado a esta participação surgem alguns problemas, tais como

[…] a falta de organização e divisão de tarefas, o uso abusivo do microfone, volumes estrondosos e fala grosseira, linguagem não adaptada à assembleia, movimentos desnecessários, palavras em excesso, o bater palmas no ritmo de um canto do estilo de show, ausência de silêncio.” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2017a, p. 34).

E a música, não obstante, está ligada a este conflito, uma vez que o seu uso pode acarretar situações que não podem ser previstas, pois “[…] a música tem a habilidade inata de induzir qualquer um em sua presença a estados alterados ou não ordinários de consciência (BRUSCIA, 2016, p. 145). O que é um desafio e uma dificuldade a ser superada para que não se evidencie o indivíduo, dado que “[…] o prazer que acompanha a música anula a atividade raciocinativa” (ARISTÓTELES, 1991, p. 226), mas para que a arte colabore com as dinâmicas e sentidos do rito, não criando situações desconectadas do rito. Todavia, corremos o risco de um julgamento anacrônico da arte e da música no culto, devido a possibilidade de apontá-las como inconciliáveis para a celebração, estabelecendo a arte como fins e critérios nela mesma.[37] Porém “o maior problema do coro litúrgico atual é a falta de reportório apropriado conforme as exigências da liturgia renovada” (ALBUQUERQUE, 2005, p. 139).

3.2 DIÁLOGO COMO EXPRESSÃO PARTICIPATIVA, QUE EXIGE SILÊNCIO, ATENÇÃO E CONTEMPLAÇÃO

Em uma conversa saudável, se respeita quem fala e se espera o momento de intervir de forma a contribuir com o diálogo. Na prática musical, dentro do espaço religioso, a ação não é diferente e requer que se observe a exigência do texto, o silêncio, o exercício da atenção e contemplação:

[…] todo sinal, por ser coisa para o homem, e não só coisa da natureza, supõe uma convenção entre os comunicantes. Daí decorre que todo sinal tem de ser aprendido. Supõe uma experiência não só individual, mas comum àqueles que devem comunicar. A familiaridade com um sinal favorece a comunicação do sentido. (GELINEAU, 1973, p. 94-95).

Dada a relação celebrativa como algo do cotidiano, vamos fundamentar a exigência do silêncio, atenção e contemplação no decorrer da celebração. Percebemos a primeira exigência mencionada como colaboradora eficaz para uma participação litúrgica ao considerar que por natureza, a liturgia “[…] se realiza entre palavra e silêncio, entre o não dito e o inaudito, porque se relaciona com o mistério” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2017a, p. 17) e para “[…] o diálogo entre Deus e os homens, que se realiza com a ajuda do Espírito Santo, exigindo breves momentos de silêncio, adequados à assembleia presente, para que neles a Palavra de Deus seja acolhida interiormente e se prepare uma resposta” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2021, §28). Compreendendo que a aproximação em um diálogo entre Deus e o homem na teologia para os católicos acontece pelo texto, dado que “[…] Deus não pode ser tocado, nem visto. O único acesso a Ele é por meio da Palavra, uma palavra sagrada, que aponta e conduz ao silêncio” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2017a, p. 16).

A tradição da Igreja sempre se preocupou com o silêncio dentro do rito, não como a ausência de atitude ritual, mas como parte integrante de um diálogo. “Embora suas palavras falem com eloquência do sacrifício de Cristo, as liturgias antigas repercutem igualmente em seus silêncios” (HAHN, 2014, p. 48). No Pós Concílio Vaticano II, surge uma

[…] interpretação parcial ou reducionista de participação ativa, restringindo-a à participação oral e falada. Mas ela dever ser entendida amplamente. Entram em ação todos os sentidos: os olhos, os ouvidos, o olfato, o gosto, o tato, o movimento, a ação e o silêncio. (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2013, p. 36).

Pois “o Concílio mostrou-nos que a Liturgia é o momento privilegiado de encontro com Deus, ensinou a valorizar e redescobrir o valor da Palavra e da Eucaristia e a importância da oração e do silêncio, da reflexão bíblica, da força que vem da Eucaristia” (ZANON, 2012, p. 12).

Já a contemplação dentro do rito não é um momento sem relação, requer uma participação e condução para que não se torne um vazio da falta de continuidade ritual, mas tenha a percepção de um movimento contínuo com as demais atividades.[38] Para o padre Gelineau, tal condução em determinado momento está ligada aos que sustentam o canto da assembleia:

[…] É preciso que haja um ‘maestro’ para marcar o início, as pausas e a conclusão, para ordenar o desenvolvimento da ação. É lhe também necessária uma forma interior; assim o ‘maestro’ deve esboçar as ideias condutoras, executar os trechos difíceis, resumir o sentimento coletivo em determinados pontos culminantes da oração, intercalar pausas entre as partes didáticas e as partes propriamente contemplativas etc. Tal é a função do chefe do coro que recebeu na liturgia uma formação cuidadosa e progressiva. Tudo isso terá por certo demonstrado a riqueza e a força da vida emocional que existe na liturgia. (GUARDINI, 1942, p.38-39).

Quanto a atenção, ela passa a ser requerida no diálogo, em vista da continuidade e preservação da dinâmica dialogal. E, neste desenvolvimento, o indivíduo dentro do rito “[…] é obrigado a acompanhá-lo com uma certa atenção; cada qual sabe que é dele próprio que depende o movimento da ação coletiva (GUARDINI, 1942, p. 38).

 

  1. O TEXTO QUE CONDUZ O DIÁLOGO NO CULTO

Abrindo a reflexão que proponho sobre o texto usado no rito, o Papa Bento XVI conclui em publicação sobre a redação, diálogo e veículo promotores do texto da música:

[…] A palavra de Deus mesma nos introduz num diálogo com Ele. O Deus que fala na Bíblia nos ensina como podemos falar com Ele. No Saltério, particularmente, ele nos dá as palavras com as quais podemos nos dirigir a Ele. Nesse dialogo, nós lhe apresentamos nossa vida, com seus altos e baixos e a transformamos num movimento em direção a Ele. Os salmos contêm em diversos lugares, instruções sobre o modo como eles devem ser cantados e acompanhados por instrumentos musicais. Para rezar com base na Palavra de Deus, a simples “labialização” não é suficiente, é necessária a música. (BENTO XVI, 2017 p. 139).

4.1 OS TEXTOS UTILIZADOS: COM QUE TEXTO (PALAVRAS) DIALOGAMOS?

O diálogo exige, de acordo com a sua própria etimologia: participantes, que já refletimos, e o texto, que é a matéria da relação. Dentro do rito essa palavra é o texto bíblico e no diálogo com a arte musical, “[…] o saltério, por si mesmo, se torna o livro de oração da Igreja a caminho, que exatamente assim se torna uma Igreja que reza com o canto” (RATZINGER, 2015, p. 118). E, com a expressão artística da música, a letra dos salmos passa a ser mais evidenciada, uma vez que a música ocidental usada na liturgia nasceu com as palavras sagradas.[39] De forma mais específica, para o culto católico, a palavra tem a função de tornar a prática ritual uma prática objetiva, evitando assim as possibilidades de ambiguidade dos gestos e sentidos, pois a palavra usada é considerada sacramento que reporta como sinal a ação de Cristo[40] na liturgia.[41]

Observando atentamente o texto mais usado com a arte musical, que são os salmos, evidenciados como oração e diálogo entre Deus e os homens, desde os primeiros séculos do cristianismo, perceberemos que o texto dos salmos está presente no cotidiano dos cristãos.[42] “Na oração dos salmos, Deus não apenas fala como inspira em nós a nossa resposta” (HAMMAN, 2002, p. 12). Destaco dos textos dos salmos a “[…] sua poesia orante, ele (salmos) nos mostra toda a gama de experiências que, diante de Deus, se tornavam oração e cântico […] a vida inteira se reflete no momento em que se desdobra o diálogo com Deus” (RATZINGER, 2015, p. 117). Logo, “[…] o saltério, por si mesmo, se torna o livro de oração da Igreja a caminho, que exatamente assim se torna uma Igreja que reza com o canto (RATZINGER, 2015, p. 118).

Este texto, que convida os congregados a fazerem uso dele como resposta, confirma que “[…] as ações litúrgicas significam o que a Palavra de Deus exprime: a iniciativa gratuita de Deus e ao mesmo tempo a resposta de fé de seu povo” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1997, §1153). O uso dos salmos na liturgia, já citado como texto propício para arte musical, é apontado em diversos textos bíblicos no Novo Testamento e como herança do culto judaico é assimilado nas primeiras liturgias, tendo no século II, como relato mais preciso “um fato característico: a cristologização[43] dos salmos. Os dois princípios de base que a dominam são: Salmos, voz de Cristo, e Salmos, voz a Cristo” (NEUNHEUSER, 2007, p. 72). Durante o Pós Concílio Vaticano II temos uma retomada desta valorização do uso do texto bíblico, posto que o texto bíblico está no centro do ritual e os participantes, assim como suas funções, se relacionam com o texto.[44] Ou seja, texto condutor das ações, concretizando e relacionando “[…] o mesmo Cristo feito alimento – Palavra e Eucaristia – torna-se, então, Palavra cantada e partilhada em comunidade (MARTINS FILHO, 2019, p. 74).

Compreendido o objeto deste subtítulo, se faz necessário conceituar o movimento intrínseco da utilização do texto com a arte musical. Sendo importante considerar que a música tem uma relação milenar com as construções textuais, a saber que ‟[…] entre os gregos designava toda forma de arte sonora, incluindo o canto, a literatura, a poética, e toda forma de letras que guardavam seu caráter harmônico” (SILVA, 2017, p. 36).  Já especificamente para a liturgia celebrada no Brasil, indica uma palavra mais do cotidiano e da realidade que esteja inspirada e possa nascer através da reflexão bíblica, podendo ser colocada para a ação ritual[45], dado que a concepção teológica e prática da celebração presume a ação dos congregados que se apropriam da palavra das escrituras, e pela fé, utilizam-na no canto.

4.2 MÚSICA E SAGRADA ESCRITURA PRESENTE NAS RELAÇÕES DO POVO

É muito comum a experiência musical sendo registrada na Bíblia, dada “a importância que a música tem para a religião da Bíblia que pode ser facilmente deduzida pelo fato de que a palavra cantar (e seus derivados) é um dos vocábulos mais usados na Bíblia” (RATZINGER, 2015, p.115). As experiências humanas relatadas no decorrer dos textos bíblicos possuem, muitas vezes, relação com música. Destaca-se a primeira expressão relacionada no texto veterotestamentário com a música no livro do Êxodo capítulo 15 que, na teologia do Papa Bento XVI é apontado como uma experiência que possui sentido ao longo da história devido ao sofrimento e “[…] transmutados em cânticos de louvor” (BENTO XVI, 2017, p. 116), quando Moisés e os israelitas cantaram[46], e que é usado nos dias de hoje na celebração mais importante dos católicos: a vigília de Páscoa.[47]

E, no início do cristianismo, o canto ritual se apropriou destas experiências de vida relatadas nos textos bíblicos, que faziam parte do culto do povo hebreu que “[…] apesar de cumprirem uma função ritual, com forte expressão no culto, os salmos não estavam, de modo algum, desvinculados do cotidiano da sociedade hebreia”, (MARTINS FILHO, 2019, p. 23), e:

[…] se desenvolveu ao passar da Sinagoga à Igreja; aos salmos foram logo acrescentados cantos. Em face da teologia, os salmos, com a sua alegria musical virgem de todo puritanismo, malgrado a surdina impostam pela metodologia alegórica, não podiam permanecer sem efeito. Continuar a orar com o auxílio dos cantos de Israel tornados cantos da Igreja, continuar a cantá-los, significava que toda a riqueza de sentimentos e de emoções da prece de Israel continuava atual. (BENTO XVI, 2017, p. 32).

Prática bem conservada nos primeiros séculos do cristianismo que tem nos textos bíblicos a orientação para conduta dos cristãos e “[…] deve-se reconhecer que, durante toda época patrística, o uso da Escritura é capital, tanto na argumentação teológica como nas escolhas da vida” (MAZZA, 2020, p. 29). Comunhão com esta tradição que é fortemente retomada pela ideia do Concílio Vaticano II contida na constituição sobre a liturgia, a qual se refere à música como parte integrante e que deve estar em simbiose com o texto sagrado[48], já mencionado como texto usado para a celebração do rito.

Conforme citado, comumente o livro bíblico em que encontramos a maior relação de música e experiência de vida de um povo, atrelado ao grande uso no decorrer da celebração do rito católico romano nos dias de hoje, é o livro dos salmos. Observando pela questão teológica: “[…] os salmos são o principal meio bíblico para expressar emoção humana” (ASHTON, 2012, p.81). Visto que “[…] na liturgia, a Sagrada Escritura aparece como o modelo “estruturante” da comunicação entre Deus e os homens, Deus toma a iniciativa e se dirige aos homens, busca-os, e sua Palavra os atinge hoje numa atualidade que ressoa” (GELINEAU, 1973, p.172). Portanto, é a iniciativa do sagrado para a condução das atividades e atitudes deste povo, sendo comunicada pelo texto bíblico e potencializada pela arte musical.

4.3 COMUNICAÇÃO COM O TEXTO BÍBLICO

O texto bíblico, em sua forma comunicativa, é o texto utilizado para a prática ritual, que consiste em um memorial. Logo, o discurso de Ratzinger, ao explicar a liturgia como uma relação divina com os homens, confirma a primeira questão importante desta comunicação: a palavra.[49] Todavia, “para fazer um rito não basta um texto, é preciso um gesto oral. Só no gesto concreto do leitor, naquele contexto, aqueles destinatários, a palavra se revela comunicação integral” (GELINEAU, 1973, p. 150) e nisso se dá a primeira ação da comunicação: alguém que profere, canta ou realiza uma expressão oral e interpela o texto como fosse a voz de Deus[50] para com os congregados. Esta mensagem exige a recepção positiva dos presentes, uma vez que “[…] para ser bem compreendida, a palavra de Deus deve ser escutada e acolhida com espírito eclesial e cientes da sua unidade com o sacramento eucarístico” (BENTO XVI, 2007, § 45).

Dado o primeiro passo comunicativo que vem de Deus com sua palavra, e a recepção atenta e silenciosa dos que estão no culto, partimos ao terceiro passo que é a resposta deste diálogo. Resposta essa que é dos congregados e estes também utilizam o texto sagrado para tal, compreendendo que “um imperativo atravessa toda a Santa Escritura, a saber, a expressão concreta pelo apelo à adoração e à glorificação de Deus, que é, para a Bíblia, a vocação mais profunda do homem” (BENTO XVI, 2017, p. 61). Na Igreja presente na América Latina, o encorajamento aos fiéis é de que deem “[…] graças a Deus que deu o dom da Palavra, com a qual podemos comunicar com Ele por meio de seu Filho que é sua Palavra, e entre nós. Damos graças a Ele que por seu grande amor fala a nós como a amigos” (CONSELHO EPISCOPAL LATINO AMERICANO, 2007, §25).

Concluindo então, a comunicação perfeita é dada pela aceitação[51] e apropriação do texto bíblico feitas pelos homens: “[…] somente a humilde submissão ao Logos oferece a verdadeira liberdade e abre-nos às reais dimensões de nossa vocação enquanto homens” (BENTO XVI, 2017, p. 128).

 

  1. A MÚSICA COMO EXPRESSÃO DO DIÁLOGO

Assim como ação de graças e sacrifício não se excluem, a música não se separa do diálogo e esta forma comunicativa e celebrativa, fica mais clara sendo usada pelo veículo artístico da música.

5.1 A COMUNICAÇÃO FACILITADA

A arte musical é rica em possibilidades de comunicação, sendo um veículo potente para atingir objetivos tanto no cotidiano, quanto na prática religiosa. Enquanto arte e expressão, considero o apontamento de Bruscia de que:

[…] a experiência musical por sua própria natureza constrói e é construída sobre relações de todos os tipos. A música traz unidos ritmo e palavras, palavras e melodia, melodia e harmonia, um tema com outro tema, uma voz com outra, solista com acompanhamento, apenas para nomear algumas relações. Dentro da pessoa, essas relações conectam a música com emoções, música com a vida de alguém e com seus entes queridos. Ela integra corpo, mente e espírito. Conecta pessoas numa miríade de relacionamentos e as ancora em suas sociedades e culturas (BRUSCIA, 2016, p. 69).

E toda esta poderosa ação da arte musical, ainda no pensamento de Bruscia, proporciona “[…] experiências unitivas nas quais a pessoa perde as fronteiras do eu, transcende a si mesma, e se mescla ou se torna una com a música, consigo mesma, com seus cônjuges, comunidade, cultura, natureza, o universo ou toda a humanidade” (BRUSCIA, 2016, p. 145).

Diante da proximidade e relação musical do indivíduo, adentro na relação peculiar da música e liturgia que, no apontamento do Papa Bento XVI sobre esta colaboração artística em vista da comunicação da resposta do homem para com a mensagem divina, são mostradas com unidade histórica. Tendo “o cantar, que justamente supera o modo habitual de falar, é, como tal, um evento pneumático (RATZINGER, 2015, p. 118), como Papa afirma que:

[…] desde o instante em que o homem quer louvar a Deus, a simples palavra não mais lhe basta. Falar com Deus está para além dos limites da linguagem humana. Assim, o homem sempre recorreu à música, ao canto e aos sons dos instrumentos, vozes da criação. (BENTO XVI, 2017, p.75).

Essa relação secular de música e ação ritual é vista e compreendida como muito útil para que a comunicação seja facilitada e clara. Relação comum e que vemos na própria história da liturgia cristã com relações em diversas áreas, não apenas com a música[52], que, tendo o revestimento da arte para ser usado no rito romano, se potencializa.[53]

5.2 TIPOLOGIA DA MÚSICA RITUAL QUE FAVORECE O DIÁLOGO

A música contribui e favorece a resposta dos fiéis dentro do culto e isso cria um diálogo musical. Todavia, qual é a forma e quais atribuições dentro desta forma evidenciam e favorecem ao acontecimento da prática musical dentro do ritual? Trata-se de um assunto amplo que futuramente poderá despertar novas pesquisas, para promover práticas dentro do espaço sagrado. Porém, neste momento, a ideia é apresentar a relação da forma com a prática musical.

A forma musical exige uma estrutura, que passa por conceitos de ritmo, melodia, harmonia entre outros. Estes elementos irão provocar reações em seus ouvintes, a menos que estes possuam patologias que impeçam isso, como a amusia[54], por exemplo. No âmbito da filosofia, compreende-se que “[…] o ritmo e a harmonia penetram mais profundo na alma e afetam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição e tornando-a perfeita” (SILVA, 2017, p. 167). Esta forma está relacionada no cotidiano pela sua singularidade, considerando que na frequência e vibração da música, encontramos tensões, conflito e na melodia um curso para a resolução.[55] Na vida, “a música acompanha boa parte do nosso quotidiano. Não enche somente as pausas da diversão e do repouso, mas constitui o pano de fundo quase que contínuo de todas as formas de atividade e de trabalho” (ABBAGNANO, 1989, p. 265). Concluindo sobre a relação da forma com a vida:

[…] a obra de arte não tem uma finalidade prática, mas possui um sentido que nela a essência das coisas e a vida íntima da alma do artista e da alma humana se projetam de um modo límpido e sincero. Ela deve ser o reflexo da beleza da verdade. A finalidade prática é o alvo do esforço, os trabalhos e da ordem; o sentido é o conteúdo da existência, da existência que floresce e se desenvolve. (GUARDINI, 1942, p. 77).

Visto a forma em comum com a realidade, adentramos na celebração do culto católico, olhando para as contribuições da forma musical para com o culto. A forma musical também no culto, vai colaborar com a mensagem, sendo facilitadora dessa, a saber:

[…] uma celebração sem canto é considerada uma celebração morta, apagada, desanimada. O Canto, ao contrário, anima, desperta, dá vida. Além disso, tem o poder de unir as pessoas juntando nossa voz à voz dos irmãos e das irmãs, ao ritmo dos instrumentos, vai se criando em nós uma abertura e uma consciência maior de pertencermos uns aos outros. Também nossa relação com o Senhor é facilitada pelo canto; nossa oração torna-se mais profunda, mais fervorosa. (BUYST, 2007, p. 66).

Para o rito celebrado no Brasil, compulsa a compreensão e desenvolvimento dessa tipologia musical com o culto. Um cuidado de muitos anos, estimulado pelo Concílio Vaticano II e retomado pelas conferências episcopais latinas, que consideram “[…] do ponto de vista litúrgico-musical, seguindo as instituições de Medellín, urge recuperarmos nosso jeito de fazer música, ou dito de outra maneira, nossa maneira musical de construir o humano no contexto celebrativo” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2017b, p. 88).

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa foi extremamente prazerosa e frutuosa, abrindo perspectivas futuras e promovendo a curiosidade no assunto, para a ampliação da pesquisa e melhor aprofundamento das provocações mencionadas nestas páginas. A reflexão foi delimitada em conceituar a existência do diálogo, concatenado às orientações eclesiais. Pesquisar sobre a existência de uma ação que ainda não é percebida e estimulada na prática cultual da Igreja católica no Brasil é oferecer novas perspectivas e saídas para o desenvolvimento celebrativo. Perante a inconformidade do processo formativo e da pouca valorização ao desenvolvimento celebrativo, que este artigo possa ser uma provocação para sairmos da mediocridade do ritualismo e do cumprimento de atividades. Para tal movimento, chamo de diatipolospraxia. Pois, trata-se do que é proposto, provocado em forma, natureza e característica na Palavra e pela palavra uma prática relacional, ordenada e constante.

A música precisa ser valorizada e trabalhada com mais esmero, entendendo que “[…] uma música somente é bela quando é boa em sua forma e finalidade […] o bem está além do mundo da vida” (SILVA, 2017, p. 171), é um encontro com o ser divino que cultua. E este canto, esta união de vozes que intercala com silêncio e com o diálogo “[…] é sobretudo o grande canto de agradecimento e de louvor ao Criador e a intercessão potente da misericórdia divina realizada por Cristo (NEUNHEUSER, 2007, p. 260). Atuar, neste espaço religioso com a arte musical a serviço desta liturgia, necessita do musicista a consciência que a fidelidade deve imperar para a realização de sua finalidade de que “[…] a liturgia da Igreja tem o dever imperioso de captar o canto à glória de Deus contido no cosmo e fazê-los ressoar (BENTO XVI, 2017, p. 51), através da conversa entre Deus e os fiéis. Uma proposta de diálogo, não apenas com o uso das palavras ou até mesmo do Lógos, mas uma dinâmica de relação capaz de evidenciar similitude do fiel com Deus.

Apresentei neste artigo a música como ritual, portanto, constante simbiose com o que os católicos celebram: “[…] glorificação como a principal razão que exige que a liturgia cristã seja uma liturgia cósmica, que orquestre, de certo modo, o mistério do Cristo com o auxílio das vozes da criação” (BENTO XVI, 2017, p. 33), pois para a tradição da Igreja:

[…] união com a Igreja celeste realiza-se de modo mais sublime. quando, sobretudo na sagrada Liturgia, na qual a virtude do Espírito Santo atua sobre nós através dos sinais sacramentais, concelebramos em comum exultação os louvores da divina Majestade e, todos de todas as tribos, línguas e povos, remidos no sangue de Cristo (cf. Ap. 5,9) e reunidos numa única Igreja, engrandecemos com um único canto de louvor o Deus uno e trino.  (LUMEM GENTIUM, 1964, §50).

 

 

  1. REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. A sabedoria da vida: cada dia a procura da felicidade. 12. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1989.

ALBUQUERQUE, Amaro Cavalcanti. et al. Música brasileira na liturgia. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2005.

ALDAZABAL, José. Vocabulário Básico de Liturgia. 1. ed. Prior Velho: Editora Paulinas, 2007.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1991.

ASHTON, Mark; HUGUES, R. Kent; KELLER, Imothy J. Louvor: análise teológica e prática. 1. ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

BENTO XVI, Papa. O espírito da música. 1. ed. Campinas: Editora Ecclesiae, 2017.

______. Sacramentum Caritatis. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 20017.

BÍBLIA. Português. In: Bíblia Sagrada: antigo e novo testamento. Tradução: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São Paulo, Brasil. Paulus, 2001.

BOGAZ, Antônio Sagrado; HANSEN, João Henrique. Liturgia no Vaticano II: novos tempos da celebração cristã. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2014.

BOSELLI, Goffredo. O sentido espiritual da liturgia. 2. ed. Brasília: Edições CNBB, 2019.

BRUSCIA, K. E. Definindo musicoterapia. Tradução: Marcus Leopoldino. 3. ed. Dallas, EUA: Barcelona Publishers, 2016.

BUYST, Ione. Liturgia de coração. Espiritualidade da celebração. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2007.

CARVALHO, Humberto Robson. Missa: celebração do mistério pascal de Jesus. 2. ed. São Paulo: Editora Salesiana, 2008.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Vaticano: Liberia Editrice Vaticana. Tradução: CNBB. 1. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Dei Verbum: Constituição dogmática sobre a revelação divina. 1965. Disponível em: <https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html>. Acesso em: 28 dez. 2021.

______. Lumen Gentium: Constituição dogmática sobre a Igreja. 1964. Disponível em: <https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html>. Acesso em: 28 dez. 2021.

______. Sacrossactum Concilium: Constituição sobre a sagrada liturgia. 11. Ed. São Paulo: Paulinas, 1963.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Deixa a flor desabrochar: Elementos de Pastoral Litúrgica. 1. ed. Brasília: Edições CNBB, 2013.

______. Instrução Geral do Missal Romano e Introdução ao Lecionário. 7. ed. Brasília: Edições CNBB, 2021.

______. Liturgia e Participação. 1. ed. Brasília: Edições CNBB, 2017a.

______. Liturgia e Profecia: 50 anos de Medellín. 1. ed. Brasília: Edições CNBB, 2017b.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO AMERICANO (2007). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. 2. ed. Brasília: Edições CNBB, 2007.

GELINEAU, Joseph Em vossas assembleias: sentido e prática da celebração litúrgica. 1. ed. São Paulo, Brasil. Edições Paulinas, 1973.

GUARDINI, Romano. O Espírito da Liturgia. 1. ed. Rio de Janeiro: Edições Lumen Christi, 1942.

HAHN, Scott Walker. O banquete do Cordeiro: A missa segundo um convertido. 1. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

HAMMAN, A. G. Os salmos com Santo Agostinho. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

LUTZ, Gregório. Eucaristia: a família de Deus em festa. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2019.

______. O que é Liturgia. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2003.

MARINS, José. Fomos a um Concílio: a surpresa do Vaticano II. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2015.

MARTINS FILHO, José Reinaldo Felipe. A música como rito: aspectos teológicos e pastorais. 1. ed. Curitiba: Editora Brazil Publishing, 2019.

MAZZA, Enrico. A mistagogia. As catequeses litúrgicas do fim do século IV e seu método. 1. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2020.

NEUNHEUSER, Burkhard. História da liturgia através das épocas culturais. 1. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

RATZINGER, Joseph. Introdução ao Espírito da liturgia. 4. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

______. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. 1. ed. São Paulo: Editora Planeta, 2011.

______. Teologia da Liturgia: o fundamento sacramental da existência cristã. 2. ed. Brasília: Edições CNBB, 2019.

SILVA, Fernando Maurício. A república de Platão: Introdução à filosofia. 1. ed. Guarapuava: Apolodoro Virtual Edições, 2017.

WEBER, José. Canto litúrgico: forma musical, análise e composição. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2016.

ZANON, Darlei. Para ler o Vaticano II. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2012 .

[1]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II 1963, §112. A música deve ser considerada como atividade permanente, constante e necessária. Para a Igreja Católica em sua constituição, a música reveste de maior nobreza o culto.

[2]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1963, §5. Na contextualização litúrgica, trata-se de evidenciar a grandeza divina, manifestada em Jesus Cristo. Este glorificado pelo Pai, que também glorifica o Pai. Ações presentes na liturgia na memória da morte e ressurreição.

[3]CONFERÊNCIA EPISCOPAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2021, §1. O documento é considerado da mesma forma que como a partitura está para a música, a instrução geral está para organizar, explicar e mostrar como proceder com os ritos litúrgicos católicos.

[4]BÍBLIA, 2001, Mateus 26.30. O salmo cantado, indica o encerramento do rito, que Jesus e seus discípulos realizaram naquela noite.

[5]RATZINGER, 2011, p.137

[6]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1963, §1. Toda ação ritual católica, necessita estar voltada em Cristo, por Cristo e com Cristo.

[7]ALDAZABAL, 2007, p. 166. O termo Liturgia, vem do grego leitourgia, que significa trabalho do povo. Compreendido como ação do povo em prol de uma atividade coletiva.

[8]Embora algumas publicações do teólogo Joseph Ratzinger tenham sido lançadas anos depois de ter sido eleito papa e assim assumindo o nome de Bento XVI, o mesmo solicitou que suas reflexões sendo pesquisas teológicas anteriores ao início do pontificado, pudessem ser publicadas em seu nome de registro. Assim, preservando o título papal para os escritos que seguiram dentro de seu pontificado e intimamente ligado ao magistério papal da Igreja Católica Romana.

[9]BÍBLIA, 2001, Atos dos Apóstolos 2.42: realizavam a fração do pão. Primeiro nome dado ao culto católico.

[10]BÍBLIA, 2001, 1 Coríntios 11. 17-34: destaca as reuniões promovida pela comunidade destinatária da carta. O autor refere a segunda pessoa plural, indicando um grupo. E menciona que esta reunião é a ceia. Os versículos 23 ao 26 são usados nas liturgias católicas como parte do ritual.

[11]Joseph Gelineau, francês, foi um padre jesuíta que é considerado um dos expoentes do movimento litúrgico que provocou reflexões na Igreja. No Brasil é um dos grandes influenciadores da reforma litúrgica.

[12]FONSECA, 2014, p. 16.

[13]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1963, §14. Está presente para a religião, a ligação de filhos para com o Pai, e esta ligação deve ser lembrada e rezada no culto. É o caráter do diálogo.

[14]BÍBLIA, 2001, Romanos 12.5.

[15]Ibidem., 1 Pedro 2.9

[16]RATZINGER, 2019, p. 384.

[17]LUTZ, 2009, p.8

[18]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1963, §48.

[19]GUARDINI, 1942, p.37

[20]CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2021, §46.

[21]Ibidem., §50.

[22]Ibidem., §55.

[23]Ibidem., §72.

[24]Ibidem., §90.

[25]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1965, §21. Trata-se de uma organização que valoriza o texto em simbiose com a parte Eucarística.

[26]BOSSELLI, 2019, p. 151

[27]BÍBLIA, 2001, João 1.1

[28]Ibidem., Isaías 55.10

[29]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1965, §5.

[30]MARINS, 2015, p. 26.

[31]Burkhard Neunheuser, religioso, alemão, professor no Pontifício Instituto Litúrgico de Santo Anselmo em Roma entre 1962 e 1973.

[32]Por ordem De Teodósio I, o Cristianismo passa ser a religião oficial de Roma no ano de 380 d.C.

[33]GELINEUAU, 2013, p. 12

[34]NEUNHEUSER, 2007, p. 150

[35]Ibidem., 2007, p. 165

[36]13º Concílio da Igreja Católica. Realizado no século XVI, quando temos uma nova perspectiva de mundo acontecendo com as novas descobertas e historicamente reativo a reforma cristã.

[37]BENTO XVI, 2017, p. 67

[38]CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2017a, p17.

[39]BENTO XVI, 2017, p.141

[40]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1965, §4.

[41]GELINEAU, 1973, p.84

[42]HAMMAN, 2002, p. 6.

[43]RATZINGER, 2015, p.118

[44]BOGAZ, 2014, p.67

[45]ALBUQUERQUE, 2005, p. 143

[46]BÍBLIA, 2001, Êxodo 15. 1-18

[47]Celebração que acontece no sábado à noite que antecede o domingo da Páscoa. Celebração do fogo novo, onde se realiza o batizado dos catecúmenos, fazem memória da ressurreição de Cristo e recordam toda a relação divina com a criação.

[48]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1963, §112.

[49]BENTO XVI, 2017, p. 103.

[50]HAMMAN, 2002, p. 12. Em Santo Agostinho, encontramos o apontamento da comunicação Deus e os homens. A ação primária é de Deus, seguida pela aceitação e ao mesmo tempo resposta do homem.

[51]RATZINGER, 2015, p. 125

[52]MARTINS FILHO, 2019, p.14.

[53]WEBER, 2016, p.8. Para o padre compositor José Weber existe a necessidade de uma letra de qualidade, pois, “uma letra medíocre, sem inspiração, não é um convite para a inspiração, vazada de lugares-comuns, sem conteúdo bíblico e litúrgico.

[54]Insensibilidade a artes. Tendo incapacidade de perceber e reproduzir sons musicais.

[55]BRUSCIA, 2016, p.68.

Deixe seu comentário