Vigília de Natal: Jesus a luz do mundo (Jo 8,12)
Esp. Anderson Cata Prêta[1]
andersoncatapreta@yahoo.com.br
Nesta última semana que antecede a grande solenidade, o memorial do nascimento de Jesus segundo a carne (como cantamos nas Kalendas),[2] invisível em divindade que em nossa carne tornou visível,[3] pude refletir com mais de noventa pessoas, de dezesseis estados diferentes, sobre a celebração em questão. Diversas realidades, experiências e perspectivas que promoveram uma reflexão profícua e repleta de consciência.
As reflexões foram em torno das práticas, e/ou possíveis práticas, nessa liturgia solene. Todavia, surgiu a necessidade de elucidar os elementos sensíveis que evidenciam, dentro do culto, Jesus como a luz do mundo. Pois devemos considerar que a “luz continua a exercer uma grande pedagogia e simbolismo” (ALDAZABAL, 1996, p. 171)
A presente proposta reflexiva tem por intuito alertar para o entendimento de que celebramos o verbo de Deus e sua centralidade presente em tudo que fazemos na celebração, e a luz está presente.[4] Resgatar o olhar e a sensibilidade que vão além dos textos que são sobrecarregados com comentários que mais nos cansam e não colaboram, músicas sem sentido que buscam apenas rimas, e advertir sobre o uso exacerbado de microfone.[5]
Aliás, inúmeros abusos litúrgicos circundam a celebração. Impulsionados por diversos textos e conclusões de que “as histórias do primeiro Natal são resplandecentes em luz” (BORG, Marcus e CROSSAN John, 2008, p.203). Deviam apontar o Cristo, mas a má interpretação gera compreensões equivocadas como os inúmeros pisca piscas até shows pirotécnicos de iluminação. Roubam a atenção dos batizados e geram mais uma teatralização do que promovem uma participação consciente, ativa e frutuosa.
Eis a luz de Cristo!
Reforço que a ideia aqui não é esgotar a reflexão sobre os elementos, que com toda a certeza merecem maior atenção. Esse texto, sobretudo quer evidenciar a existência dos sinais, e que esses transbordam em si ao ponto de ser dispensável a criatividade selvagem que encontramos na noite de Natal.
Como bem sabemos, iniciamos a mãe de todas as vigílias, a Vigília Pascal, com o fogo novo e o Círio adentra (carregado por quem preside[6]) o templo com as invocações: Eis a luz de Cristo.[7] Toda a assembleia tem as suas velas acesas e damos continuidade ao rito. Mais à frente, perceberemos a relação com outro sinal.[8] O rico simbolismo da chama do Círio, também pretende representar o Espírito do Senhor.[9]
“Irmãos e irmãs, a nossa esperança chama-se Jesus. (…) Façamos Páscoa com Cristo! Ele está vivo e ainda hoje passa, transforma e liberta. Com Ele, o mal já não tem poder, o fracasso não pode impedir-nos de recomeçar, a morte torna-se passagem para o início duma nova vida. Porque com Jesus, o Ressuscitado, nenhuma noite é infinita; e mesmo na escuridão mais densa, brilha a estrela da manhã.” (VATICAN NEWS apud FRANCISCO, 2022)
A luz de Cristo cantada em noite silenciosa, noite sagrada (que cantamos na versão em português como noite feliz) é a luz que vem ao encontro dos que também sofrem.
Mas, qual outra ligação com a noite de Natal? O Círio pascal, sinalizado na noite santa da Páscoa, nos comunica o Cristo que era, que vem e que virá (Ap 1,8). Além disso, podemos observar o local onde está o Círio: ao lado do ambão. E, a partir do espaço litúrgico, vamos para o segundo símbolo: o verbo!
A tua palavra é luz para o meu caminho (Sl 119.105)
A sagrada Escritura é repleta de textos que apontam o Cristo como Luz. Navegaremos por alguns para justificar Cristo verbo como luz.
O próprio Jesus afirmou que ele é a luz do mundo (Jo 8,12). É o Cristo que venceu a morte, e das trevas resplandeceu a luz (2 Cor 4,6) e as trevas não o derrotaram (Jo 1,5). Nós éramos um povo em trevas, mas raiou uma luz (Mt 4,16). Hoje, somos convidados a andar na luz (1 Jo 1,7) e sermos no mundo a luz (Mt 5,14-16). É o verbo feito carne, o Cordeiro que ilumina o mundo (Ap 21,23). Jesus é a luz que dissipou as trevas, mas elas ainda permanecem no mundo e nas pessoas individualmente. (FRANCISCO, 2020a)
Portanto cremos que:
Em Jesus Cristo, a verdade se manifestou plenamente, cheio de graça e verdade (Jo 1,14), Ele é a luz do mundo (Jo 8,12) é a verdade (Jo 14,6) para que aquele que crê nele não permaneça nas trevas (Jo 31,32). Os discípulos de Jesus “permanece em sua palavra para conhecer a verdade que liberta (Jo 8,32) e santifica. Seguir a Jesus é viver do Espírito da verdade que o Pai envia em seu nome e conduz a verdade plena (Jo 16,13). (CIC 2466)
A nossa relação com o texto bíblico também é uma relação que pode figurar em relação a luz: Nós esperamos ansiosamente em sua palavra como um guarda espera a luz da manhã (Sl 130,5-6).
Vamos encontrar a primeira experiência de Paulo com o Senhor, da luz que vinha do céu e o envolveu (At 9,3).[10] E o próprio apóstolo em suas cartas vai trabalhar o conceito de luz para mencionar a palavra de Deus e a apresentação do próprio Cristo (2 Cor 4,4-6).
No Evangelho de Mateus, no capítulo segundo que relata sobre o nascimento de Jesus, por três vezes o autor cita a estrela, nos versículos dois (viram), nove (seguiram) e dez (observaram). No texto de Lucas temos o canto de Zacarias que ao menciona o filho como profeta do altíssimo, aquele que irá a frente para preparar os caminhos de quem virá, e os adjetivos, Sol nascente e que iluminará as trevas, dirigindo os passos (Lc 1, 76-79). O evangelista no capítulo seguinte, ao relatar a experiência dos pastores com o anúncio dos anjos, aponta que a glória do Senhor os envolveu de luz (Lc 2,9). No mesmo capítulo dois no canto de Simeão, novamente dá o adjetivo de luz a Cristo (Lc 2,32).
Valorizando ainda mais a conceituação bíblica de Cristo Luz, os textos atribuídos a João possuem muitas citações, basta lermos o capítulo vinte um do Apocalipse e perceberemos a intenção da evidência da luz, com as palavras brilho, cristalino, a ênfase em pedras preciosas que refletem luminosidade e uma cidade que não precisa do Sol e nem da Lua, mas a sua lâmpada é Cristo. No capítulo vinte e dois segue o brilho de um rio vivificante, não haverá mais noite e não serão necessárias mais luzes secundárias, bastará a luz de Deus. Veremos tal associação também no prefácio um do Natal: “nova luz da vossa glória, brilhou para nós” (MISSAL ROMANO). Ou seja, está intimamente ligada a afirmação, Deus é luz![11] (1 Jo 1,5-7). E para nós Ele é a nossa luz (Sl 27,1).
A luz de Cristo, resplandece nos batizados
Os que lavaram e alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro (Ap 7,14). Sim, a raça escolhida, sacerdócio real que Deus chamou das trevas para a luz (1 Pd 2,9), os que entram em comunhão com Cristo,[12] tornados filhos da luz (1Ts 5,5): “É a imagem de todos os batizados que imersos na graça, foram arrancados das trevas e colocados à luz da fé” (FRANCISCO, 2020b)
O Catecismo da Igreja Católica, excelera ainda mais esse entendimento:
Este banho é chamado iluminação, porque deles que recebem este ensinamento (catequético) têm o espírito iluminado. Depois de receber o Batismo o Verbo, “a luz verdadeira que ilumina todo homem (Jo 1,9), o batizado após ter sido iluminado, se converte em filho da luz e em luz ele mesmo (Ef 5,8) (CIC 1216)
Concluo esse terceiro símbolo com as palavras do Papa:
É tarefa do cristão dispersá-las, fazendo resplandecer a luz de Cristo e anunciando o seu Evangelho. Trata-se de uma irradiação que pode derivar até das nossas palavras, mas deve brotar principalmente das nossas «boas obras» (v. 16). Um discípulo e uma comunidade cristã são luz no mundo quando orientam os outros para Deus, ajudando cada um a experimentar a sua bondade e misericórdia. O discípulo de Jesus é luz quando sabe viver a sua fé fora dos espaços restritos, quando contribui para eliminar preconceitos, para eliminar calúnias e para fazer entrar a luz da verdade nas situações corrompidas pela hipocrisia e pela mentira. Fazer luz. Mas não se trata da minha luz, é a luz de Jesus: nós somos instrumentos para que a luz de Jesus chegue a todos. (FRANCISO, 2020a)
Pois vivemos o que celebramos e celebramos o que vivemos, conforme bem sabemos e está em nossa constituição.[13]
Considerações finais
Fico a me perguntar, qual a necessidade de desejar fazer algo além desses sentidos claros de Cristo Luz? Que não se sente transbordada pelo resplendor do Senhor em sua Palavra? Que não consegue perceber que tudo que celebramos tem plena ligação com o mistério Pascal e a realização da vontade do Pai? E nós, que organizamos a celebração, cada um em sua realidade, desejamos tornar explicável a luz inacessível que ninguém pode ver e habita em Cristo? (1 Tm 6,16). Em contrapartida, vejo roteiros e mais roteiros sendo criados, e uma assembleia que olha, vê, diz que é bonito, mas não consegue enxergar em si a magnificência de Cristo.
Cabem penduricalhos na celebração, ao preço de dizer que estão procurando evidenciar a celebração ou são um mero abuso litúrgico? A sobriedade dos ritos[14] fica onde, quando por si só, eles comunicam o mistério pascal de Cristo? Talvez um momento oportuno no final do tempo do Advento, ou nas propostas das novenas de Natal, uma celebração comunitária que valorize o sinal da luz para promover a participação na vigília, promovendo a conversão proposta no advento, a novidade do Evangelho que é a luz.[15]
Outro absurdo é achar que a palavra luz precisa estar nos cantos dessa noite. Outra forma de não observar a grandeza dos textos e permitir que o rito se expresse.
A simplicidade da manjedoura é deixada de lado. Precisamos refletir qual é a luz da Igreja no mundo, ouvindo mais o Papa: A Igreja dedica-se com generosidade e ternura aos pequeninos e aos pobres: este não é o espírito do mundo, esta é a sua luz (FRANCISCO 2020a). Uma liturgia celebrada com tal consciência, irá impulsionar para um olhar e verdadeira prática cristã na sociedade.
Referência Bibliográfica
ALDAZABAL, José (1996). Dicionário Elementar de Liturgia. Prior Velho: Paulinas.
BÍBLIA (2001). Português. In: Bíblia Sagrada: antigo e novo testamento. Tradução: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. 1. ed. São Paulo, Brasil: Paulus.
BORG, Marcus J. e CROSSAN, John Dominic (2008). O primeiro Natal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
BUCCIOL, Dom Armando (2020). Sinais e símbolos, gestos e palavras na liturgia: Para compreender bem e viver a liturgia. Brasília: Edições CNBB.
CATA PRETA (2022). Estão calando a voz do povo: o uso exacerbado do microfone. Caminho música litúrgica. Disponível em: < https://formacaocaminho.com.br/estao-calando-a-voz-do-povo-o-uso-exacerbado-do-microfone-na-liturgia/> Acesso em 22 dez 2022.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Vaticano: Liberia Editrice Vaticana. Tradução: CNBB. 1. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
Concílio Ecumênico Vaticano II (1963). Sacrossactum Concilium: Constituição dogmática sobre a sagrada litúrgia. Vaticano> Disponível em: < https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html> Acesso em 22 dez 2022.
FRANCISCO, Papa (2020a) Angelus 09 fevereiro. Vaticano. Disponível em: < https://www.vatican.va/content/francesco/pt/angelus/2020/documents/papa-francesco_angelus_20200209.html>
______ (2020b). Angelus 22 de março de 2020. Vaticano. Disponível em: < https://www.vatican.va/content/francesco/pt/angelus/2020/documents/papa-francesco_angelus_20200322.html>. Acesso em 22 dez 2022.
______ (2022). Desiderio Desideravi: formação litúrgica do povo de Deus. Vaticano. Disponível em: < https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/20220629-lettera-ap-desiderio-desideravi.html> Acesso em 22 dez 2022.
Jerônimo, Dom (2018). Tempo do Advento: História, celebração e espiritualidade. Diocese de São José dos Pinhais. Disponível em: < https://www.diocesesjp.org.br/arquivo-de-noticias/820-tempo-do-advento-historia-celebracao-e-espiritualidade> Acesso em 22 dez 2022.
Jerônimo, São (2011). Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Paulus.
MISSAL ROMANO. Prefácio do Natal II: A restauração universal na encarnação. Missal haboo. Disponível em: < https://missal-habbo.blogspot.com/p/prefacio-do-natal-ii.html> Acesso em 23 dez 2022.
VATICAN NEWS (2022). Vigília Pascal: com Jesus, nenhuma noite é infinita, afirma o Papa. Vatican News. Disponível em: < https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-04/papa-francisco-vigilia-pascal-com-jesus-nenhuma-noite-infinita.html> . Acesso em 22 dez 2022.
[1]Especialista em práticas musicais para espaços religiosos brasileiros, pela FACEC.
[2]Anúncio de Natal cantado na primeira missa da noite do dia vinte e quatro de dezembro.
[3]MISSAL ROMANO. Prefácio II do Natal.
[4]FRANCISCO, Papa, 2022. A luz é um elemento que está oposto a abstração espiritual.
[5]CATA PRETA, 2022.
[6]BUCCIOL, 2020, p.75. Ou pelo diácono.
[7]ALDAZABAL, 1996, p.70
[8]Ibidem, p.285. Leva a conhecer algo que não vemos.
[9]BUCCIOL, 2020, p.75.
[10]Jerônimo, São (2011). Uma luz que enfrente as trevas e vence as trevas. No caso, impede o perseguidor, cujo era a condição de Saulo.
[11]Ibidem. p.823. Uma das três descrições de Deus, segundo os textos atribuídos a João. A saber: luz, amor e Espírito.
[12]FRANCISO, Papa (2020b).
[13]CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1963, §9. Os cristãos mostram ao mundo que são luz.
[14]Ibidem, 1963 §34, 50.
[15]Jerônimo, Dom (2018).